Xavier Vatin*
Acabo de entender, depois de 10 anos de
inquietação, angústia e perplexidade, o porquê da minha imensa dificuldade em
falar francês, minha língua materna, com meus filhos no dia-a-dia. Muito antes
de eles nascerem, sempre tive a convicção da importância do bilinguismo
precoce. Sempre imaginei as melhores formas de exercer esse bilinguismo tão
útil para o futuro deles, além de muito positivo do ponto de vista do
desenvolvimento cognitivo, segundo os especialistas (tenho vários livros sobre
o tema).
Contudo, ao longo dos últimos dez anos (minha filha
Luna tem 11 e meu filho Luca tem 7), nunca consegui falar regular e/ou
diariamente francês com eles, aqui no Brasil. Na ocasião de curtas viagens de
férias na França para visitar a família, Luna, contudo, demonstrou uma notável
facilidade para entender e falar francês (fato este que vinha amenizar meu
sentimento de culpa). Da última vez que fomos, o ano passado, quando Luca tinha
6 anos, ele também já demonstrou uma certa facilidade na compreensão da língua.
Mesmo assim, até o fatídico dia de hoje, fazia dez
anos que eu buscava entender as razões do meu bloqueio em falar minha língua
materna com meus filhos. Entre elas, sempre considerei que o fato de viver no
Brasil e estar inserido cotidianamente na realidade local (trabalho, escola,
vida doméstica) era a razão essencial desta recorrente dificuldade. Afinal, é
bem mais fácil falar português na realidade diária brasileira do que tentar
falar, “artificialmente”, o francês.
Diante de tamanha dificuldade, tentei estabelecer,
ao longo dos anos, diversas regras: falar francês em casa com eles dois, falar
francês um determinado dia da semana, falar francês algumas horas por dia, ler
histórias em francês para eles... Comprei, de fato, dezenas de livros em
francês para eles e já consegui ler algumas vezes, na integralidade, “O Pequeno
Príncipe”, para ambos, quando eram mais novos. Mas a experiência de leitura,
até hoje, não foi muito além dessa narração noturna da obra prima de Saint
Exupéry...
Mais uma vez, me sinto um pouco menos culpado
quando vejo a relativa fluência de Luna na ocasião das referidas curtas viagens
à França – fluência notável e até surpreendente, repito, diante da pouca
exposição dela à língua materna do pai dela.
Ora, hoje à noite, tentando contar para Luca a
história da vida dele em francês na hora de colocar ele para dormir, entendi
finalmente, repentinamente, a causa profunda, verdadeira, desses dez anos de
desencontro perturbador com a minha língua materna.
O português do Brasil tem se tornado, ao longo dos
últimos 25 anos, a minha língua adotiva, a língua na qual aprendi a expressar
meus sentimentos, minhas emoções, de uma forma que eu nunca tinha conseguido na
minha língua materna, o francês.
Vivi uma infância feliz, porém marcada, aos 7 anos,
por uma ruptura abrupta, profunda. Deste trauma inaugural do ser humano que sou
até hoje, seguiram longos anos de silêncio, emoções sufocadas, choros
escondidos, palavras nunca ditas. Até os 21 anos de idade, quando vim para a
Bahia pela primeira vez, eu ainda era essa criança de 7 anos absolutamente
inapta a expressar, verbalizar seus sentimentos, suas inquietações, seus medos,
suas raivas contidas, suas dores, suas feridas abertas.
A Bahia me ofereceu a possibilidade de me expressar
de uma forma nova, inédita, salvadora. Ao longo dos últimos 25 anos, aprendi,
inconscientemente, a libertar uma fala presa há tantos anos. E essa libertação
aconteceu, gradualmente, nessa nova língua adotiva.
Portanto, acredito, hoje, que a minha extrema dificuldade
em falar francês com meus filhos, aqui no Brasil, no dia-a-dia, seja a
consequência dessa história um tanto peculiar. A língua portuguesa tem se
tornado, para mim, muito mais do que uma segunda língua. A língua portuguesa,
para mim, foi e continua sendo um instrumento de libertação psíquica e
emocional.
Hoje, tentando contar sua história de vida para meu
amado filho na minha língua materna, ao meu ouvir falando, buscando as palavras
com dificuldade, palavras estranhamente isentas de afeto, compreendi,
finalmente. Parei. Refleti. E prossegui a narrativa até ele dormir... Porém, em
português, reencontrando instantaneamente fluência e afeto.
Concluo afirmando que, para mim, a língua do afeto,
a língua da libertação e da transmissão do amor filial, não é a minha língua
materna, mas sim a minha língua adotiva.
A Bahia teve a bondade de me adotar quando me
joguei nos braços dela, 25 anos atrás, em busca de um abraço salvador e
libertador. A Bahia fez de mim um homem novo, mais livre do que a criança e o
jovem adulto enclausurado em si que eu era e sempre fui na minha terra natal e
na minha língua materna.
A língua portuguesa tem sido o instrumento da minha
alforria emocional.
Axé!
Xavier Vatin
* Xavier Vatin é francês e
foi adotado pela Bahia aos 21 anos de idade, quando passou a conviver com
Pierre Verger e iniciar pesquisas etnomusicologicas sobre o candomblé.
Professor de antropologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia desde
2006 e com pesquisas sobre as musicas afro-atlânticas, Vatin é pai de dois
filhos franco-baianos, Luna, 11 anos, e Luca, 7 anos.
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