Rafael José dos Santos
Em 1995, recém chegado em
Nova Iorque com uma bolsa de estudos, descobri que John
Hammond iria dar um show no Museu de História Natural. Para quem não o conhece,
John Hammond é um daqueles bluesmen que
faz a música soar como se estivéssemos em algum lugar entre o Mississipi e a
Louisiana.
Chegando ao Museu (aliás, um lugar improvável
para um show de blues), fui abordado por um norte-americano que me pediu
informações sobre onde comprar o ingresso. Entramos juntos na fila do guichê e,
após cinco minutos de conversa, ele me veio com algo mais ou menos assim: “– Como
um cara do Brasil sabe algo sobre blues?”.
Fiquei extremamente ofendido e
comecei a desfiar uma série de nomes de cantores, álbuns, canções, além de
sugerir ao homem que sabíamos muita coisa no Brasil, mas eles sabiam quase nada
de nós. O norte-americano ficou meio sem jeito e pediu desculpas. Entrou comigo
no espaço reservado ao show, assistimos John Hammond, performance incrível como
sempre, depois saímos juntos conversando. Hoje, só no espaço de tempo em que
escrevo essas linhas, já trocamos uns três ou quatro e-mails. Em um deles ele relembra
o episódio e me pergunta de gozação: “-What does a guy from Brazil know about
the blues?” (O que um cara do Brasil sabe sobre o blues?). O blues forjou uma
amizade que se estende há mais de dez anos, sem perda de contato, e cada visita
do amigo é uma enxurrada generosa de livros e CDs.
No mesmo e-mail o amigo Tony cita uma frase de Sonny Boy Williamson:
"White guys want to play the blues so bad, but, man, all they do play the
blues so bad." O trocadilho do velho bluesman só faz sentido em inglês devido à ambiguidade da palavra “bad”, que no contexto significa querer
“muito” e tocar “mal”: Caras brancos querem muito tocar o blues, mas todos eles
tocam realmente muito mal.
O filme Crossroads (1986, direção de Walter Hill com a impecável produção
musical de Ry Cooder) trata disso de modo interessante: um garoto branco de
Nova Jersey diz ao velho homem negro que é um bluesman. O homem, supostamente o lendário Willie Brown, amigo de
Robert Johnson, ironiza o menino e a partir daí começa um verdadeiro rito de
iniciação, com uma peregrinação ao sul dos Estados Unidos. O resto, só vendo o
filme.
Williamson, felizmente, não tinha
razão. O próprio John Hammond é prova disso, como também Eric Clapton, quando quer tocar blues, ou John Mayall. Caras
brancos e brasileiros também sabem tocar o blues, é só ouvirmos o que rola por
Caxias do Sul para saber. Mas qual é a magia desse estilo, na verdade um
conjunto de estilos que foram se formando através de mesclas diversas? Muitos
de minha geração chegaram ao blues por um percurso inverso que começou com o
rock.
O norte-americano McKinley Morganfield nos diz: “Well you know the blues got pregnant / And they named the baby rock& roll” (Bem, vocês sabem, o blues ficou grávido / e deram à criança o
nome de rock & roll). Soa familiar? Mr. Morganfield é mais conhecido como Muddy
“Mississipi” Waters, um nome interessante: tanto pode ser entendido como um
homem chamado Muddy Waters vindo do Mississipi, estado onde nasceu em 1915,
como, literalmente, “águas lamacentas do Mississipi”, rio que se tornou sagrado
para o blues.
A vida de Muddy Waters é a metáfora da história do blues: nascido no sul
dos Estados Unidos, Muddy migrou para Chicago, onde faleceu em 1983. Só que em
Chicago o blues não morreu, ganhou nova face, dizem, pela introdução da
guitarra elétrica pelas mãos de Muddy que, curiosamente, não era um virtuose no
instrumento.
De qualquer maneira, se o blues é pai e mãe do rock, Muddy Waters
certamente é um de seus padrinhos. Mas, e os avós da criança? O musicólogo
norte-americano Eric Lomax defende a ideia de que o blues origina-se do estilo
dos cantores griot do Sudão, poetas
da tradição oral e narradores da vida cotidiana, mas sugere que se possa
retroceder ainda mais, até as melodias melancólicas do antigo oriente que ele
caracteriza como “queixas” (complaints)
dirigidas a divindades ou aos senhores de terras por camponeses submetidos a
duras condições de trabalho e altos impostos. O estilo teria migrado para o
Sudão, para o leste da África e de lá atravessado o Atlântico na diáspora
impingida aos povos negros.
Em um álbum excepcional, produzido por Lomax, Roots of the Blues (Raízes do Blues. New World Records, 1977), há pistas
desse percurso. Na primeira faixa aparecem, intercaladas, a música Louisiana cantada por Henry Ratcliff euma Field Song from Senegal (Canção
do campo, do Senegal), entoada por Bakari-Badji. O contraponto ilustra melhor
que qualquer explicação escrita as similaridades na entonação, sobretudo o
sentimento da solidão de quem canta.
Roots of the blues é mais que
um álbum: é um documento imprescindível sobre a história dessa música que
desaguou, como as águas do velho Mississipi, em tantas variantes musicais, do
jazz ao rock. Quando indígenas norte-americanos falantes da língua Ojibwe
batizaram o “grande rio” de misi-ziibi, não podiam saber o que ele viria a
significar mais tarde.
No mesmo álbum organizado por Lomax é possível ouvir canções de trabalho
(working songs) que o pesquisador
gravou de um grupo de prisioneiros de uma penitenciária rural. Lomax afirma que
no extremo sul dos Estados Unidos essas instituições penais eram como extensões
das plantações de algodão. Compasso marcado pelas pás e picaretas, um lamento
triste pauta o ritmo do trabalho, como Berta, Berta:
O Lord, Berta, Berta, O Lord, gal oh-ah
(Oh Senhor, Berta, Berta, oh Senhor, garota.)
O Lord, Berta, Berta, O Lord, gal well.
(Oh Senhor, Berta, Berta, oh Senhor, garota.)
Go ‘head marry, don’t you wait on me oh-ah,
(Vá em frente e se case, não espere por mim)
Go ‘head marry, don’t you wait on me well, (Vá em frente e se case, não espere
por mim)
Might not want you when I go free oh-ah,
(Posso não
querer você quando eu for livre)
Might not want you when I go free well.
(Posso não
querer você quando eu for livre)
Berta, Berta pode ser ouvida também
em outro álbum que traça a história do blues e do jazz de modo magnífico: I heard you twice the first time, de
Branford Marsalis (Sony, 1992). Eu diria
que esse trabalho de Marsalis, junto com a coletânea de Lomax, são verdadeiros
temas de casa para aqueles que querem saber do blues.
Uma estrutura consagrada no blues é a da repetição e síntese, como
no célebre Crossroad blues de Robert
Johnson:
I went to the crossroad, fell down
on my knees
I went to the crossroad, fell down on my knees
I went to the crossroad, fell down on my knees
(Eu fui à encruzilhada e caí sobre meus joelhos)
Asked the Lord above "Have mercy, now save poor Bob, if you please"
Asked the Lord above "Have mercy, now save poor Bob, if you please"
(Pedi ao Senhor acima, “tenha
piedade, salve o pobre Bob agora, por favor)
Robert Leroy Johnson, como Muddy
Waters, nasceu no Mississipi. Há dúvidas em relação à exatidão do ano, mas
fala-se em 1911. Faleceu, segundo a lenda, após tomar um whisky envenenado por
um dono de bar enciumado por Johnson haver paquerado sua mulher: morte de bluesman. Entre 1936 e 1937 gravou 41
faixas, das quais 13 canções foram repetidas duas vezes, e está tudo registrado
na coletânea Robert Johnson – The
Complete Recordings, que pode ser encontrada em CD, mas, se possível,
recomendo fortemente a caixa com três bolachões de vinil lançada no Brasil pela
Columbia em 1990.
A lenda acerca do pacto que Robert
Johnson teria feito com o diabo (afinal, quem era o Lord above da encruzilhada?) é significativa se lembrarmos que no
Brasil, o orixá Legba ou Exu foi sincretizado também com a figura do demônio. Os
domínios de Legba são os cruzamentos dos caminhos, das estradas, os crossroads. Por outro lado recorre também
o tema de Fausto, o acordo com Mefistófeles que leva o demandante ao sucesso à
custa de sua alma. Em Crossroads, o
filme, o diabo é o empresário e a compra da alma (soul) é a submissão ao
mercado que destruiria a essência do blues.
Não tenho certeza se as lendas e mitos do blues devam ser “esclarecidos”
à luz de alguma historiografia, e se alguém já o fez, não sei se vou querer
ler. Isso pode soar até como injúria, vindo de alguém que tem as ciências
humanas por ofício, mas convenhamos: alguma magia deve encantar o mundo, mesmo
para um sociólogo. Uma das poucas racionalizações que não se pode abrir mão é a
lembrança de que nada havia de romântico nas plantações de algodão do sul dos
Estados Unidos: os cotton fields eram
lugar de sofrimento, penúria, e o lamento negro era uma prece. Na contrapartida
da escravidão, os negros do sul entregam aos Estados Unidos as raízes de sua
própria música. Ironia ou sutileza?
Na primavera norte-americana de 1990 o fotógrafo Walter Carvalho desceu o
Rio Mississipi registrando lugares e pessoas do blues, de Illinois à Louisiana.
O trabalho está registrado na edição de março de 1992 da revista Íris Foto e
fez parte de um projeto que incluiu o vídeo "Blues", sob a direção de
João Moreira Salles, e o álbum de mesmo nome lançado pela Som Livre em 1995. O
subtítulo do CD “Blues” é: “pain created
to heal pain”, “dor feita para curar a dor” (da escravidão, da pobreza, do
amor frustrado). Nas fotografias de Carvalho, no filme de Salles e no álbum, os
personagens não são os grandes nomes do blues, mas mestres quase anônimos
encontrados no caminho do “grande rio”, gente que parece trazer a alma na voz. Muddy
Waters é um dos padrinhos do rock, mas há muitos outros que nunca chegaram ao
chamado Grande Público: Dave Honeyboy Edwards, Eugene Powell, James Son Thomas
e Big Jack Johnson são alguns.
Quando vejo por aí algum garotão entoando o lamento do blues em uma
harmônica, penso que a celebração não ira acabar e que as águas do Mississipi
ainda vão rolar por muito tempo, lá nos Estados Unidos, aqui no Brasil ou em
qualquer outro lugar onde a dor tenha que ser curada, embora a dor da vida não
tenha cura.
Bluesmen sabem disso.
* Versão ligeiramente modificada de artigo publicado
originalmente no jornal O Caxiense,
Caxias do Sul, p. 24 - 25, 11 dez. 2009.
Parabéns pelas belas informações históricas e atuais deste belo e inigualável estilo que é o blues!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pela leitura!
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