28 de fev. de 2017

Na encruzilhada, de joelhos: “dor para curar a dor” *

Rafael José dos Santos


Em 1995, recém chegado em Nova Iorque com uma bolsa de estudos, descobri que John Hammond iria dar um show no Museu de História Natural. Para quem não o conhece, John Hammond é um daqueles bluesmen que faz a música soar como se estivéssemos em algum lugar entre o Mississipi e a Louisiana.

Chegando ao Museu (aliás, um lugar improvável para um show de blues), fui abordado por um norte-americano que me pediu informações sobre onde comprar o ingresso. Entramos juntos na fila do guichê e, após cinco minutos de conversa, ele me veio com algo mais ou menos assim: “– Como um cara do Brasil sabe algo sobre blues?”.  

            Fiquei extremamente ofendido e comecei a desfiar uma série de nomes de cantores, álbuns, canções, além de sugerir ao homem que sabíamos muita coisa no Brasil, mas eles sabiam quase nada de nós. O norte-americano ficou meio sem jeito e pediu desculpas. Entrou comigo no espaço reservado ao show, assistimos John Hammond, performance incrível como sempre, depois saímos juntos conversando. Hoje, só no espaço de tempo em que escrevo essas linhas, já trocamos uns três ou quatro e-mails. Em um deles ele relembra o episódio e me pergunta de gozação: “-What does a guy from Brazil know about the blues?” (O que um cara do Brasil sabe sobre o blues?). O blues forjou uma amizade que se estende há mais de dez anos, sem perda de contato, e cada visita do amigo é uma enxurrada generosa de livros e CDs.

            No mesmo e-mail o amigo Tony cita uma frase de Sonny Boy Williamson: "White guys want to play the blues so bad, but, man, all they do play the blues so bad." O trocadilho do velho bluesman só faz sentido em inglês devido à ambiguidade da palavra “bad”, que no contexto significa querer “muito” e tocar “mal”: Caras brancos querem muito tocar o blues, mas todos eles tocam realmente muito mal.

     O filme Crossroads (1986, direção de Walter Hill com a impecável produção musical de Ry Cooder) trata disso de modo interessante: um garoto branco de Nova Jersey diz ao velho homem negro que é um bluesman. O homem, supostamente o lendário Willie Brown, amigo de Robert Johnson, ironiza o menino e a partir daí começa um verdadeiro rito de iniciação, com uma peregrinação ao sul dos Estados Unidos. O resto, só vendo o filme.

Williamson, felizmente, não tinha razão. O próprio John Hammond é prova disso, como também Eric Clapton, quando quer tocar blues, ou John Mayall. Caras brancos e brasileiros também sabem tocar o blues, é só ouvirmos o que rola por Caxias do Sul para saber. Mas qual é a magia desse estilo, na verdade um conjunto de estilos que foram se formando através de mesclas diversas? Muitos de minha geração chegaram ao blues por um percurso inverso que começou com o rock.

O norte-americano McKinley Morganfield nos diz: “Well you know the blues got pregnant / And they named the baby rock& roll” (Bem, vocês sabem, o blues ficou grávido / e deram à criança o nome de rock & roll). Soa familiar? Mr. Morganfield é mais conhecido como Muddy “Mississipi” Waters, um nome interessante: tanto pode ser entendido como um homem chamado Muddy Waters vindo do Mississipi, estado onde nasceu em 1915, como, literalmente, “águas lamacentas do Mississipi”, rio que se tornou sagrado para o blues.

A vida de Muddy Waters é a metáfora da história do blues: nascido no sul dos Estados Unidos, Muddy migrou para Chicago, onde faleceu em 1983. Só que em Chicago o blues não morreu, ganhou nova face, dizem, pela introdução da guitarra elétrica pelas mãos de Muddy que, curiosamente, não era um virtuose no instrumento.

De qualquer maneira, se o blues é pai e mãe do rock, Muddy Waters certamente é um de seus padrinhos. Mas, e os avós da criança? O musicólogo norte-americano Eric Lomax defende a ideia de que o blues origina-se do estilo dos cantores griot do Sudão, poetas da tradição oral e narradores da vida cotidiana, mas sugere que se possa retroceder ainda mais, até as melodias melancólicas do antigo oriente que ele caracteriza como “queixas” (complaints) dirigidas a divindades ou aos senhores de terras por camponeses submetidos a duras condições de trabalho e altos impostos. O estilo teria migrado para o Sudão, para o leste da África e de lá atravessado o Atlântico na diáspora impingida aos povos negros.


Em um álbum excepcional, produzido por Lomax, Roots of the Blues (Raízes do Blues. New World Records, 1977), há pistas desse percurso. Na primeira faixa aparecem, intercaladas, a música Louisiana cantada por Henry Ratcliff euma Field Song from Senegal (Canção do campo, do Senegal), entoada por Bakari-Badji. O contraponto ilustra melhor que qualquer explicação escrita as similaridades na entonação, sobretudo o sentimento da solidão de quem canta.

Roots of the blues é mais que um álbum: é um documento imprescindível sobre a história dessa música que desaguou, como as águas do velho Mississipi, em tantas variantes musicais, do jazz ao rock. Quando indígenas norte-americanos falantes da língua Ojibwe batizaram o “grande rio” de  misi-ziibi, não podiam saber o que ele viria a significar mais tarde.

No mesmo álbum organizado por Lomax é possível ouvir canções de trabalho (working songs) que o pesquisador gravou de um grupo de prisioneiros de uma penitenciária rural. Lomax afirma que no extremo sul dos Estados Unidos essas instituições penais eram como extensões das plantações de algodão. Compasso marcado pelas pás e picaretas, um lamento triste pauta o ritmo do trabalho, como Berta, Berta:

O Lord, Berta, Berta, O Lord, gal oh-ah (Oh Senhor, Berta, Berta, oh Senhor, garota.)
O Lord, Berta, Berta, O Lord, gal well. (Oh Senhor, Berta, Berta, oh Senhor, garota.)

Go ‘head marry, don’t you wait on me oh-ah, (Vá em frente e se case, não espere por mim)
Go ‘head marry, don’t you wait on me well, (Vá em frente e se case, não espere por mim)

Might not want you when I go free oh-ah,
(Posso não querer você quando eu for livre)
Might not want you when I go free well.
(Posso não querer você quando eu for livre)

            Berta, Berta pode ser ouvida também em outro álbum que traça a história do blues e do jazz de modo magnífico: I heard you twice the first time, de Branford Marsalis  (Sony, 1992). Eu diria que esse trabalho de Marsalis, junto com a coletânea de Lomax, são verdadeiros temas de casa para aqueles que querem saber do blues.

            Uma estrutura consagrada no blues é a da repetição e síntese, como no célebre Crossroad blues de Robert Johnson:

I went to the crossroad, fell down on my knees
I went to the crossroad, fell down on my knees
(Eu fui à encruzilhada e caí sobre meus joelhos)
Asked the Lord above "Have mercy, now save poor Bob, if you please"
(Pedi ao Senhor acima, “tenha piedade, salve o pobre Bob agora, por favor)

            Robert Leroy Johnson, como Muddy Waters, nasceu no Mississipi. Há dúvidas em relação à exatidão do ano, mas fala-se em 1911. Faleceu, segundo a lenda, após tomar um whisky envenenado por um dono de bar enciumado por Johnson haver paquerado sua mulher: morte de bluesman. Entre 1936 e 1937 gravou 41 faixas, das quais 13 canções foram repetidas duas vezes, e está tudo registrado na coletânea Robert Johnson – The Complete Recordings, que pode ser encontrada em CD, mas, se possível, recomendo fortemente a caixa com três bolachões de vinil lançada no Brasil pela Columbia em 1990.

            A lenda acerca do pacto que Robert Johnson teria feito com o diabo (afinal, quem era o Lord above da encruzilhada?) é significativa se lembrarmos que no Brasil, o orixá Legba ou Exu foi sincretizado também com a figura do demônio. Os domínios de Legba são os cruzamentos dos caminhos, das estradas, os crossroads. Por outro lado recorre também o tema de Fausto, o acordo com Mefistófeles que leva o demandante ao sucesso à custa de sua alma. Em Crossroads, o filme, o diabo é o empresário e a compra da alma (soul) é a submissão ao mercado que destruiria a essência do blues.

Não tenho certeza se as lendas e mitos do blues devam ser “esclarecidos” à luz de alguma historiografia, e se alguém já o fez, não sei se vou querer ler. Isso pode soar até como injúria, vindo de alguém que tem as ciências humanas por ofício, mas convenhamos: alguma magia deve encantar o mundo, mesmo para um sociólogo. Uma das poucas racionalizações que não se pode abrir mão é a lembrança de que nada havia de romântico nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos: os cotton fields eram lugar de sofrimento, penúria, e o lamento negro era uma prece. Na contrapartida da escravidão, os negros do sul entregam aos Estados Unidos as raízes de sua própria música. Ironia ou sutileza?

Na primavera norte-americana de 1990 o fotógrafo Walter Carvalho desceu o Rio Mississipi registrando lugares e pessoas do blues, de Illinois à Louisiana. O trabalho está registrado na edição de março de 1992 da revista Íris Foto e fez parte de um projeto que incluiu o vídeo "Blues", sob a direção de João Moreira Salles, e o álbum de mesmo nome lançado pela Som Livre em 1995. O subtítulo do CD “Blues” é: “pain created to heal pain”, “dor feita para curar a dor” (da escravidão, da pobreza, do amor frustrado). Nas fotografias de Carvalho, no filme de Salles e no álbum, os personagens não são os grandes nomes do blues, mas mestres quase anônimos encontrados no caminho do “grande rio”, gente que parece trazer a alma na voz. Muddy Waters é um dos padrinhos do rock, mas há muitos outros que nunca chegaram ao chamado Grande Público: Dave Honeyboy Edwards, Eugene Powell, James Son Thomas e Big Jack Johnson são alguns.

Quando vejo por aí algum garotão entoando o lamento do blues em uma harmônica, penso que a celebração não ira acabar e que as águas do Mississipi ainda vão rolar por muito tempo, lá nos Estados Unidos, aqui no Brasil ou em qualquer outro lugar onde a dor tenha que ser curada, embora a dor da vida não tenha cura.
Bluesmen sabem disso.


* Versão ligeiramente modificada de artigo publicado originalmente no jornal O Caxiense, Caxias do Sul, p. 24 - 25, 11 dez. 2009.

2 comentários:

  1. Parabéns pelas belas informações históricas e atuais deste belo e inigualável estilo que é o blues!

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