9 de mai. de 2016

Intolerância religiosa e preconceito: a discriminação como sintoma na cultura contemporânea.





Rafael José dos Santos 
Macuri Peteffi*








Intolerância, preconceito e discriminação são fatos antigos e assumiram diferentes modalidades no decorrer da história, mas hoje ganham uma visibilidade inédita, seja pela intensificação das diferenças pela interculturalidade da mundialização, seja pelas possibilidades de manifestação pelas redes sociais. Os campos ideológicos que se articulam na contemporaneidade forjam um espaço, mesmo que utópico, pelo qual gostaríamos de convocar uma interpretação dos acontecimentos sociais. Por esta brecha uma nova cena se apresenta. É impossível não pensar nos famigerados comentários xenófobos, sexistas, homofóbicos e, em particular no caso das religiosidades afro-brasileiras, as ofensas de cunho fundamentalista pseudo cristão.

Estes gestos de não aceite do outro antecipam uma quase falência dos laços sociais, A cena contemporânea apressada, das resoluções por instante, propõe um apagamento das subjetividades. O afro-brasileiro engendrado com seu gesto religioso tem sua posição de sujeito negada e estranhada. Do afrodescendente ao afro(in)descente, as religiões africanas apresentam todo um estatuto que resiste ao monopólio do totalitarismo ético e religioso no momento.

As intolerâncias de qualquer natureza consistem na incapacidade de conviver com a diferença, incapacidade que se materializa em coerções, violência simbólica ou física. A intolerância funciona de acordo com uma lógica de imposição: algo que é particular, próprio de um grupo, é entendido por esse grupo como universal, logo, deve ser aceito por todo o conjunto da sociedade, buscando-se a eliminação do outro indesejável. Este outro que não pode ser registrado no meu imaginário, é o outro que pode me estranhar. E estranha. No rastro deixado por Freud, o estranhamento familiar seria o que temos de mais próximo e, num tempo próximo, mais distante. O desejo de não reconhecer o outro em sua posição de diferença causa o horror, o medo e até mesmo a morte. Neste jogo de força o sujeito tem um encontro com o preconceito, com a discriminação e a intolerância.

O preconceito é de ordem subjetiva, moldado pela socialização, posição no espaço social, de gênero, cultura. A noção de cultura não passaria despercebida por Freud e pela sua experiência, a psicanálise. Com o olhar repousando sobre o nervosismo moderno até o grande período e mal-estar na civilização. Desde então sabemos que há um conflito fundador na cultura. Este conflito seria pedra angular para umas das mais potentes formações do inconsciente: o sintoma. Assim, discriminação é o preconceito em ação. O sintoma, discriminação, filia-se num imaginário já inscrito com leis tiranas em relação ao outro,  de diferenças subjetivas e por esta operação temos o preconceito.

No caso das intolerâncias religiosas no Brasil contemporâneo, há que se distinguir duas dimensões. A primeira é de natureza da estratégia de grupos autodenominados “evangélicos” (não nos refirimos aqui às denominações cristãs de modo geral), verdadeiras empresas da fé, nas quais os interesses políticos e econômicos de seus líderes, profissionalmente subsidiados por sofisticadas técnicas de marketing, logram a eficácia simbólica de mobilizar pessoas. A segunda dimensão diz respeito ao porquê dessa eficácia, que pode ser sintetizada na seguinte pergunta: como os discursos de ódio dos dirigentes dessas empresas conseguem atingir seu público?

São dimensões distintas e interligadas. O crescimento das empresas pseudo religiosas fundamentalistas tem várias interpretações, mas vamos nos deter em um aspecto: elas oferecem um produto que vai ao encontro de anseios e angústias de uma parcela da população, anseios e angústias que os modelos religiosos dominantes até então deixaram de atender. Uma das táticas de mobilização de corações e mentes consiste em eleger alvos que personifiquem o mal, fornecendo a referência da origem dos sofrimentos – um movimento análogo àquele utilizado pelo nazi-fascismo. No caso brasileiro, isso toma a forma discursiva de demonização do outro. Todas as insatisfações difusas aos olhos dessa parcela da população encontram um inimigo a ser combatido.  

Essa estratégia, mutatis mutandis, é a mesma em diferentes situações: a demonização do socialismo – ou algo que pensam ser socialismo - pelos representantes do capital, corporificando em um grupo, ou em uma figura, a representação do mal, mobilizando sentimentos igualmente difusos de insatisfação em momentos de crise.

No que toca às religiosidades afro-brasileiras, há um aspecto marcante. É o do corpo e da corporeidade, sobre o qual opera uma dominação. Nos rituais de Umbanda, Candomblé, Batuque, o corpo é subvertido, insurge-se contra as contingências da disciplina, abrindo espaço para “além do bem e do mal”, algo que pode ser insuportável, logo, deve ser exorcizado. Essa é a base sobre a qual reside a eficácia simbólica da ação consciente e planejadas dos empresários da fé. Na instância do consciente a ordem é a de ação. Ou seja, posso reproduzir o preconceito, pois fazemos parte de uma classe social que detém boa parte do capital e que manuseia os objetos simbólicos pelos quais o sujeito do inconsciente, dos desejos, das falhas, e da alienação, pode deslizar.

Tal mobilização só encontra ressonância porque o preconceito, e aqui vamos ao nosso segundo termo, gera um campo fértil para a semeadura do ódio.

O preconceito, como já dissemos, é um sentimento subjetivo e íntimo, produto de um processo objetivo de socialização: preconceito aprende-se de acordo com uma série de variáveis: posição no espaço social (posição de classe), ideologia no seio familiar, na escola, nos grupos informais, de acordo com o gênero, etc. Pierre Bourdieu já demonstrou isso. Contudo, só as variáveis objetivas não explicam tudo. Há que considerar-se também a própria dimensão do inconsciente. A descoberta freudiana provoca um movimento de corte na própria cultura da época. Freud coloca o inconsciente num entremeio entre o racional, o consciente e o cartesiano. A Outra Cena, a do desejo,  articula a estrutura dos sujeitos e suas aparições na estrutura social, através do que conhecemos como neurose, psicose e perversão.

Como estrutura psíquica dos sujeitos a perversão é uma operação de dupla potência, a renegação. O sujeito produz dribles na censura, na lei e no interdito da cultura para alcançar o júbilo de seu gozo, negando a posição subjetiva de outro sujeito, de  outro grupo, de uma posição ideológica que não seja a sua. Nesta tríade, preconceito, discriminação e intolerância, o perverso se desloca e nos dá noticias através e pelas empresas da fé.

Intolerância e discriminação – esta entendida como ação -, são, portanto, da mesma ordem. A intolerância manifesta-se sob a forma de atos (discursos) de discriminação e de ódio. Estas duas modalidades discursivas não registram o afeto por outro sujeito. Num movimento de avesso, elas reproduzem toda uma ideologia dominante que cada vez mais demarca suas posições neoliberais e fascistas na estrutura social brasileira.
Colocam-se, portanto, duas tarefas da mesma luta: uma contra o binômio discriminação/intolerância, outra contra o preconceito. A primeira é da ordem da luta imediata, das táticas, a segundo, das estratégias. Claro que tal distinção é apenas metodológica, mas é necessária para que saibamos nos movimentar no front.

Esse front chama-se cultura. Não a cultura entendida folcloricamente como multiculturalismo festivo, mas a cultura como espaço de luta contra hegemônica, a cultura como uma arena de lutas que articule o desejo do sujeito e sua posição na ideologia compreendendo, inclusive, que parte significativa da intolerância e da discriminação não pode ser compreendida separadamente da luta de classes (como o racismo de classe, sabemos que muitas das manifestações recentes de racismo e discriminação ocorreram por conta de conquistas de direitos e, sobretudo, de espaços que antes eram exclusividade de camadas médias altas), embora não se explique completamente por ela, isto é, não possa ser reduzidas às relações materiais de produção. Exemplo? As discriminações de gênero. No interior do próprio meio LGBT, sigla que unifica universos bem distintos, há discriminação de classe. Há machismo no interior da Esquerda (alguém disse que certo deputado de um partido da esquerda teve “culhão” na votação da Câmara). Muitos adeptos de religiões afro-brasileiras apoiaram as mesmas posições que congressistas da chamada “bancada evangélica” no episódio da votação do impeachment.

A luta no campo da cultura requer estratégias e táticas diversas daquela do campo político estrito senso (política partidária), embora os itens de sua agenda devam estar presentes nos programas dos partidos da esquerda e as reivindicações devam ser levadas às instâncias do poder (foi assim no processo constituinte). Ela requer, sobretudo, a mobilização dos diferentes movimentos e coletivos, mas é imperativo que as ações sejam de caráter praxiológico e não reativo: pensar e repensar as agendas das diferentes lutas no campo cultural é imperativo no Brasil contemporâneo.

Resistência aos conformismos impostos por uma ideologia dominante que tenta, via antecipação do gozo de cada um, ditar todas as regras do jogo. A psicanálise em sua aparição clínica, não menos importante, neste ensaio que propomos engendra o seu ato com o discurso de classe dos movimentos sociais.  Uma frente para disputar as ruas, hoje orquestradas pelas políticas de uma bancada de balas, conservadora no seu fazer. É possível que não consigamos enfrentar todos os desafios numa única frente. Falharemos e destas falhas, retornaremos. A construção de um espaço de estranhamentos para uma aproximação com o debate de conjuntura política atual.

Em relação ao preconceito, a Antropologia e a Psicanálise , assim como a História e a Filosofia, cumprem um papel decisivo: o de ser a contrapartida, força contra hegemônica, da socialização conservadora que ainda é dominante.

Ainda há muito a fazer, ainda há tudo a fazer. Se não nos deixarem sonhar, nós não os deixaremos dormir.



* Macuri Peteffi, graduando em Psicologia pela UCS, Bolsista CNPq. Desde Freud até Lacan sou um leitor da psicanálise, pelo afã do inconsciente.  "Marx é um antigo flerte" No Profe. Rafa encontro um ombro forte para minhas inquietações.

2 comentários:

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