14 de mai. de 2016

O golpe prossegue: desmonte de Ministérios e política do retrocesso



Enganam-se ingenuamente os que acreditam que as mudanças ministeriais comandadas pelo vice-presidente Michel Temer tiveram o objetivo de “enxugamento” do Estado e corte nas despesas do Governo. Elas foram estrategicamente traçadas para promover o desmonte de um conjunto amplo de políticas em diferentes âmbitos da vida do país.

Um exemplo alarmante é o do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, diluído dentro do novo Ministério da Justiça e da Cidadania e, acrescente-se, entregue a um indivíduo de caráter duvidoso. Já é conhecido o ódio nutrido por parte significativa dos setores conservadores da sociedade às políticas de ação afirmativa desenvolvidas nos últimos quatro governos, assim como às iniciativas relacionadas aos Direitos Humanos.















Antes que alguém argumente que a ideia cidadania teria caráter mais abrangente, quero assinalar que ela é singular, não plural. A pluralidade foi fruto de reivindicações e lutas de diferentes segmentos da população, cada um com suas especificidades e diferenças. Sob a denominação de Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, uma variedade maior de grupos: LGBT, “Povos de Terreiros”, Mulheres vítimas de violência e abusos, entre muitos outros, encontrava/conquistava espaço e políticas específicas, contando com o apoio institucional do Governo Federal.

Ministério da Cultura (MinC), por sua vez, em retrocesso relâmpago é fundido novamente com da Educação.



A concepção de Cultura que vinha norteando o MinC constituía-se em algo que incluía políticas e programas voltados às produções artísticas, aquilo que comumente é compreendido como Cultura, mas ia muito além: a Cultura em três dimensões: a simbólica, a econômica e a cidadã, tríade que serve de pressuposto às estratégias e ações traçadas a partir da Lei nº 12.343/2010, que aprovou o Plano Nacional de Cultura (PNC).

No Artigo 2º da Lei, encontramos os “objetivos do Plano Nacional de Cultura” [1], que vão desde o reconhecimento da diversidade cultural até a formação de gestores na área cultural, sem ignorar o que, provavelmente, muitos desconhecem: a dimensão da chamada Economia da Cultura, setor que vem crescendo significativamente. Como informa Odilon Wagner: “Não há pesquisas recentes, mas especialistas afirmam que essa tendência se mantém e que o PIB das economias criativas deve estar na casa dos 5%.” [2].

A maior ironia em relação à fusão dos Ministérios da Cultura e da Educação está no documento Metas do Plano Nacional de Cultura, lançado pelo MinC em 2012. A meta de número 37 prevê: “100% das Unidades da Federação (UFs) e 20% dos municípios, sendo 100% das capitais e 100% dos municípios com mais de 500 mil habitantes, com secretarias de cultura exclusivas instaladas”.
Ou seja: todas as capitais e cidades médias e grandes com uma Secretaria exclusivamente “da Cultura”. E agora, Vice-Presidente? Não temos um Ministério Exclusivamente da Cultura, mas o Plano Nacional de Cultura é lei.

#foratemer




[1] Art. 2o São objetivos do Plano Nacional de Cultura:
I - reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira;
II - proteger e promover o patrimônio histórico e artístico, material e imaterial;
III - valorizar e difundir as criações artísticas e os bens culturais;
IV - promover o direito à memória por meio dos museus, arquivos e coleções;
V - universalizar o acesso à arte e à cultura;
VI - estimular a presença da arte e da cultura no ambiente educacional;
VII - estimular o pensamento crítico e reflexivo em torno dos valores simbólicos;
VIII - estimular a sustentabilidade socioambiental;
IX - desenvolver a economia da cultura, o mercado interno, o consumo cultural e a exportação
de bens, serviços e conteúdos culturais;
X - reconhecer os saberes, conhecimentos e expressões tradicionais e os direitos de seus
detentores;
XI - qualificar a gestão na área cultural nos setores público e privado;

XII - profissionalizar e especializar os agentes e gestores culturais;

XIII - descentralizar a implementação das políticas públicas de cultura;

XIV - consolidar processos de consulta e participação da sociedade na formulação das políticas culturais;

XV - ampliar a presença e o intercâmbio da cultura brasileira no mundo contemporâneo;

XVI - articular e integrar sistemas de gestão cultural.

[2] “É a Cultura, senhores: A indústria cultural ou do entretenimento, resguardadas suas funções sociais e culturais, emprega mais que o setor automobilístico”. Disponível em http://oglobo.globo.com/opiniao/e-cultura-senhores-19284235?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar. Acesso em 14/05/2016.



9 de mai. de 2016

Intolerância religiosa e preconceito: a discriminação como sintoma na cultura contemporânea.





Rafael José dos Santos 
Macuri Peteffi*








Intolerância, preconceito e discriminação são fatos antigos e assumiram diferentes modalidades no decorrer da história, mas hoje ganham uma visibilidade inédita, seja pela intensificação das diferenças pela interculturalidade da mundialização, seja pelas possibilidades de manifestação pelas redes sociais. Os campos ideológicos que se articulam na contemporaneidade forjam um espaço, mesmo que utópico, pelo qual gostaríamos de convocar uma interpretação dos acontecimentos sociais. Por esta brecha uma nova cena se apresenta. É impossível não pensar nos famigerados comentários xenófobos, sexistas, homofóbicos e, em particular no caso das religiosidades afro-brasileiras, as ofensas de cunho fundamentalista pseudo cristão.

Estes gestos de não aceite do outro antecipam uma quase falência dos laços sociais, A cena contemporânea apressada, das resoluções por instante, propõe um apagamento das subjetividades. O afro-brasileiro engendrado com seu gesto religioso tem sua posição de sujeito negada e estranhada. Do afrodescendente ao afro(in)descente, as religiões africanas apresentam todo um estatuto que resiste ao monopólio do totalitarismo ético e religioso no momento.

As intolerâncias de qualquer natureza consistem na incapacidade de conviver com a diferença, incapacidade que se materializa em coerções, violência simbólica ou física. A intolerância funciona de acordo com uma lógica de imposição: algo que é particular, próprio de um grupo, é entendido por esse grupo como universal, logo, deve ser aceito por todo o conjunto da sociedade, buscando-se a eliminação do outro indesejável. Este outro que não pode ser registrado no meu imaginário, é o outro que pode me estranhar. E estranha. No rastro deixado por Freud, o estranhamento familiar seria o que temos de mais próximo e, num tempo próximo, mais distante. O desejo de não reconhecer o outro em sua posição de diferença causa o horror, o medo e até mesmo a morte. Neste jogo de força o sujeito tem um encontro com o preconceito, com a discriminação e a intolerância.

O preconceito é de ordem subjetiva, moldado pela socialização, posição no espaço social, de gênero, cultura. A noção de cultura não passaria despercebida por Freud e pela sua experiência, a psicanálise. Com o olhar repousando sobre o nervosismo moderno até o grande período e mal-estar na civilização. Desde então sabemos que há um conflito fundador na cultura. Este conflito seria pedra angular para umas das mais potentes formações do inconsciente: o sintoma. Assim, discriminação é o preconceito em ação. O sintoma, discriminação, filia-se num imaginário já inscrito com leis tiranas em relação ao outro,  de diferenças subjetivas e por esta operação temos o preconceito.

No caso das intolerâncias religiosas no Brasil contemporâneo, há que se distinguir duas dimensões. A primeira é de natureza da estratégia de grupos autodenominados “evangélicos” (não nos refirimos aqui às denominações cristãs de modo geral), verdadeiras empresas da fé, nas quais os interesses políticos e econômicos de seus líderes, profissionalmente subsidiados por sofisticadas técnicas de marketing, logram a eficácia simbólica de mobilizar pessoas. A segunda dimensão diz respeito ao porquê dessa eficácia, que pode ser sintetizada na seguinte pergunta: como os discursos de ódio dos dirigentes dessas empresas conseguem atingir seu público?

São dimensões distintas e interligadas. O crescimento das empresas pseudo religiosas fundamentalistas tem várias interpretações, mas vamos nos deter em um aspecto: elas oferecem um produto que vai ao encontro de anseios e angústias de uma parcela da população, anseios e angústias que os modelos religiosos dominantes até então deixaram de atender. Uma das táticas de mobilização de corações e mentes consiste em eleger alvos que personifiquem o mal, fornecendo a referência da origem dos sofrimentos – um movimento análogo àquele utilizado pelo nazi-fascismo. No caso brasileiro, isso toma a forma discursiva de demonização do outro. Todas as insatisfações difusas aos olhos dessa parcela da população encontram um inimigo a ser combatido.  

Essa estratégia, mutatis mutandis, é a mesma em diferentes situações: a demonização do socialismo – ou algo que pensam ser socialismo - pelos representantes do capital, corporificando em um grupo, ou em uma figura, a representação do mal, mobilizando sentimentos igualmente difusos de insatisfação em momentos de crise.

No que toca às religiosidades afro-brasileiras, há um aspecto marcante. É o do corpo e da corporeidade, sobre o qual opera uma dominação. Nos rituais de Umbanda, Candomblé, Batuque, o corpo é subvertido, insurge-se contra as contingências da disciplina, abrindo espaço para “além do bem e do mal”, algo que pode ser insuportável, logo, deve ser exorcizado. Essa é a base sobre a qual reside a eficácia simbólica da ação consciente e planejadas dos empresários da fé. Na instância do consciente a ordem é a de ação. Ou seja, posso reproduzir o preconceito, pois fazemos parte de uma classe social que detém boa parte do capital e que manuseia os objetos simbólicos pelos quais o sujeito do inconsciente, dos desejos, das falhas, e da alienação, pode deslizar.

Tal mobilização só encontra ressonância porque o preconceito, e aqui vamos ao nosso segundo termo, gera um campo fértil para a semeadura do ódio.

O preconceito, como já dissemos, é um sentimento subjetivo e íntimo, produto de um processo objetivo de socialização: preconceito aprende-se de acordo com uma série de variáveis: posição no espaço social (posição de classe), ideologia no seio familiar, na escola, nos grupos informais, de acordo com o gênero, etc. Pierre Bourdieu já demonstrou isso. Contudo, só as variáveis objetivas não explicam tudo. Há que considerar-se também a própria dimensão do inconsciente. A descoberta freudiana provoca um movimento de corte na própria cultura da época. Freud coloca o inconsciente num entremeio entre o racional, o consciente e o cartesiano. A Outra Cena, a do desejo,  articula a estrutura dos sujeitos e suas aparições na estrutura social, através do que conhecemos como neurose, psicose e perversão.

Como estrutura psíquica dos sujeitos a perversão é uma operação de dupla potência, a renegação. O sujeito produz dribles na censura, na lei e no interdito da cultura para alcançar o júbilo de seu gozo, negando a posição subjetiva de outro sujeito, de  outro grupo, de uma posição ideológica que não seja a sua. Nesta tríade, preconceito, discriminação e intolerância, o perverso se desloca e nos dá noticias através e pelas empresas da fé.

Intolerância e discriminação – esta entendida como ação -, são, portanto, da mesma ordem. A intolerância manifesta-se sob a forma de atos (discursos) de discriminação e de ódio. Estas duas modalidades discursivas não registram o afeto por outro sujeito. Num movimento de avesso, elas reproduzem toda uma ideologia dominante que cada vez mais demarca suas posições neoliberais e fascistas na estrutura social brasileira.
Colocam-se, portanto, duas tarefas da mesma luta: uma contra o binômio discriminação/intolerância, outra contra o preconceito. A primeira é da ordem da luta imediata, das táticas, a segundo, das estratégias. Claro que tal distinção é apenas metodológica, mas é necessária para que saibamos nos movimentar no front.

Esse front chama-se cultura. Não a cultura entendida folcloricamente como multiculturalismo festivo, mas a cultura como espaço de luta contra hegemônica, a cultura como uma arena de lutas que articule o desejo do sujeito e sua posição na ideologia compreendendo, inclusive, que parte significativa da intolerância e da discriminação não pode ser compreendida separadamente da luta de classes (como o racismo de classe, sabemos que muitas das manifestações recentes de racismo e discriminação ocorreram por conta de conquistas de direitos e, sobretudo, de espaços que antes eram exclusividade de camadas médias altas), embora não se explique completamente por ela, isto é, não possa ser reduzidas às relações materiais de produção. Exemplo? As discriminações de gênero. No interior do próprio meio LGBT, sigla que unifica universos bem distintos, há discriminação de classe. Há machismo no interior da Esquerda (alguém disse que certo deputado de um partido da esquerda teve “culhão” na votação da Câmara). Muitos adeptos de religiões afro-brasileiras apoiaram as mesmas posições que congressistas da chamada “bancada evangélica” no episódio da votação do impeachment.

A luta no campo da cultura requer estratégias e táticas diversas daquela do campo político estrito senso (política partidária), embora os itens de sua agenda devam estar presentes nos programas dos partidos da esquerda e as reivindicações devam ser levadas às instâncias do poder (foi assim no processo constituinte). Ela requer, sobretudo, a mobilização dos diferentes movimentos e coletivos, mas é imperativo que as ações sejam de caráter praxiológico e não reativo: pensar e repensar as agendas das diferentes lutas no campo cultural é imperativo no Brasil contemporâneo.

Resistência aos conformismos impostos por uma ideologia dominante que tenta, via antecipação do gozo de cada um, ditar todas as regras do jogo. A psicanálise em sua aparição clínica, não menos importante, neste ensaio que propomos engendra o seu ato com o discurso de classe dos movimentos sociais.  Uma frente para disputar as ruas, hoje orquestradas pelas políticas de uma bancada de balas, conservadora no seu fazer. É possível que não consigamos enfrentar todos os desafios numa única frente. Falharemos e destas falhas, retornaremos. A construção de um espaço de estranhamentos para uma aproximação com o debate de conjuntura política atual.

Em relação ao preconceito, a Antropologia e a Psicanálise , assim como a História e a Filosofia, cumprem um papel decisivo: o de ser a contrapartida, força contra hegemônica, da socialização conservadora que ainda é dominante.

Ainda há muito a fazer, ainda há tudo a fazer. Se não nos deixarem sonhar, nós não os deixaremos dormir.



* Macuri Peteffi, graduando em Psicologia pela UCS, Bolsista CNPq. Desde Freud até Lacan sou um leitor da psicanálise, pelo afã do inconsciente.  "Marx é um antigo flerte" No Profe. Rafa encontro um ombro forte para minhas inquietações.

5 de mai. de 2016

O prefeito e o “bando de imigrantes”: afirmação infeliz ou conservadorismo à tona?


 (Foto: Reprodução/RBS TV)






O prefeito de Caxias do Sul, RS, Alceu Barbosa Velho, expressou de modo grosseiro seus argumentos em relação às reivindicações de imigrantes haitianos e senegaleses, que demandam políticas públicas específicas de saúde, educação, moradia, entre outros.

Para além da absoluta falta de respeito (sua Excelência referiu-se a “bando de imigrantes”), os argumentos do chefe do Executivo jogam com uma lógica que tende a acirrar a oposição entre a população local e aqueles que chegam de fora em busca de oportunidades. Em declaração ao jornal Pioneiro, publicado on line em 04/05/2016, ele afirmou:

“— Eles têm atendimento gratuito pelo SUS e acesso a tudo que as demais pessoas têm. Não é porque vieram de fora que vamos passar eles na frente de quem está aqui. Se eles querem trabalhar, têm de procurar trabalho. Está ruim para todos.”*

Ninguém em sã consciência discordará da precariedade geral da saúde, da educação e de outros serviços. Rigorosamente, eu só diria ao prefeito que não está ruim “para todos”, mas para a imensa parcela da população que necessita dos serviços públicos. E antes que alguém busque bodes expiatórios em Brasília, lembro que serviços como o SUS são gerenciados localmente (contratação de médicos, por exemplo, e médicos que trabalhem) e têm mostrado deficiências mesmo com os repasses do Governo Federal.

É óbvio que a população que estou chamando de ‘local’ tem urgências no atendimento aos seus direitos básicos.  Entretanto, o discurso do prefeito em tom desrespeitoso, não só oculta a necessidade de uma política pública específica para os imigrantes estrangeiros com dificuldades, como também reforça a visão de que os “de fora” (e não somos todos “de fora”?) são os concorrentes da população local. Assim se estabelece e se fortalece a discriminação cotidiana.

É uma visão que no mundo do trabalho se traduz no famigerado argumento de que os imigrantes ocupariam vagas pertencentes aos “locais”, argumento digno de Donald Trump, pois exime as elites econômicas e culpabiliza o estrangeiro, esse outro desconhecido. É assim em todos os lugares do mundo para onde convergem trabalhadores imigrantes: a direita conservadora não é original.

O mundo pertence ao mundo, não aos limites territoriais tão estreitos quanto a visão de mundo dos xenófobos. Os imigrantes têm suas demandas específicas assim como cada grupo social. Os primeiros imigrantes oriundos da Europa no século XIX tinham suas necessidades específicas, assim como as tinham os afrodescendentes recém-libertos do escravismo.

Em tempos nos quais as atenções estão voltadas para o cenário político, afirmações como as do prefeito Alceu aparecem como incidentais, mas é preciso estar atento ao fato de que elas apontam igualmente para uma urgência estrutural. Temos que agir em diferentes frentes simultaneamente: o caldo de cultura conservadora é um só. Acreditem.

Lênin sim!

(Rafa) Tatiana Dias e Rafael Moro Martins, autores do artigo " ELOGIAR DITADORES É A MELHOR MANEIRA DE A ESQUERDA CONTINUAR ...